GAMBIARRA: alguns pontos para se pensar uma Tecnologia Recombinante, por Ricardo Rosas

30.6.09

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A rua acha seus próprios usos para as coisas.
William Gibson, “Burning Chrome”.

Dois fatos contemporâneos: em 11 de março de 2004, em Madri, bombas explodem em estações de trem e metrô, matando milhares de civis. Entre 12 e 16 de maio de 2006, em São Paulo, ações coordenadas por celular pelo comando do PCC (Primeiro Comando da Capital), promovem ataques a diversos pontos da cidade, espalhando o pânico. Em ambos os casos, trata-se de ações que aterrorizaram a sociedade e tiveram impacto profundo no cotidiano dessas cidades.

Mais além de se associar essas ações com as práticas de terrorismo urbano, outro elemento aproxima os eventos. Um elemento talvez essencial em seus funcionamentos, sem o qual não teriam funcionado. Elemento que talvez tenha passado quase desapercebido, tão subliminar e imperceptível na feitura, mas crucial na execução: as ações foram executadas provavelmente a partir de recursos restritos ou precários, com dispositivos gerados no improviso, ou seja, gambiarras.

Boa parte dos celulares usados nas prisões, antes, durante e quiçá mesmo depois dos ataques do PCC provêm de aparelhos roubados adaptados a chips igualmente roubados, procedimento usual na prática da clonagem. As bombas detonadas em Madri eram compostas de dinamite e nitroglicerina acopladas a um celular.

E assim, oxalá, nem tudo são más notícias. A mesma época que presencia o uso da gambiarra como bomba, vê igualmente seu uso como criadora de soluções, como reciclagem de sucatas e outros materiais e tecnologias descartados pela sociedade de consumo, e como obra de arte. .

O que é, afinal, gambiarra? Definições de um dicionário como o Houaiss, vinculam-na ao famoso puxadinho, ou gato, “extensão puxada fraudulentamente para furtar energia elétrica” ou a definição, mais comportada, de “extensão elétrica, de fio comprido, com uma lâmpada na extremidade”. A gambiarra, no entanto, é aplicada correntemente, pelo senso comum, para definir qualquer desvio ou improvisação aplicados a determinados usos de espaços, máquinas, fiações ou objetos antes destinados a outras funções, ou corretamente utilizados em outra configuração, assim postos e usados por falta de recursos, de tempo ou de mão de obra.

Mais do que isso, porém, a gambiarra tem um sentido cultural muito forte, especialmente no Brasil. É usada para definir uma solução rápida e feita de acordo com as possibilidades à mão. Esse sentido não escapou à esfera artística, com várias criações no terreno próprio das artes plásticas. É dessa seara que podemos captar mais alguns conceitos reveladores da natureza da gambiarra e seu significado simbólico-cultural.

Em um ensaio sobre o tema da gambiarra nas artes brasileiras, “O malabarista e a gambiarra”, Lisette Lagnado sugere que a gambiarra é uma peça em torno da qual um tipo de discurso está ganhando velocidade. Articulação de coisas banidas do sistema funcional, a gambiarra, tomada “como conceito, envolve transgressão, fraude, tunga – sem jamais abdicar de uma ordem, porém de uma ordem muito simples”. O mecanismo da gambiarra, para Lagnado, teria, além disso, um acento político além do estético. Baseada na falta de recursos, a “gambiarra não se faz sem nomadismo nem inteligência coletiva”.

A gambiarra está igualmente muito próxima do conceito de bricolagem formulado por Claude Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem. Pensando o bricoleur como “aquele que trabalha com suas mãos, utilizando meios indiretos se comparado ao artista”, seu conjunto de meios não é definível por um projeto, como é o caso do engenheiro, mas se define apenas por sua instrumentalidade, com elementos que são recolhidos e conservados em função do princípio de que “isso sempre pode servir”.

O bricoleur cria usando expedientes e meios sem um plano preconcebido, afastado dos processos e normas adotados pela técnica, com materiais fragmentários já elaborados, e suas criações se reduzem sempre a um arranjo novo de elementos cuja natureza só é modificada à medida que figurem no conjunto instrumental ou na disposição final. A diferenciação que Lévi-Strauss faz entre o bricoleur e o engenheiro é essencial para se entender a gambiarra, essa livre criação mais além dos manuais de uso e das restrições projetuais da funcionalidade, como uma prática essencialmente de bricolagem.

Acima de tudo, para se entender a gambiarra não apenas como prática, criação popular, mas também como arte ou intervenção na esfera social, é preciso ter em mente alguns elementos quase sempre presentes. Alguns deles seriam: a precariedade dos meios; a improvisação; a inventividade; o diálogo com a realidade circundante, local, com a comunidade; a possibilidade de sustentabilidade; o flerte com a ilegalidade; a recombinação tecnológica pelo re-uso ou novo uso de uma dada tecnologia, entre outros. Tais elementos não necessariamente aparecerão juntos ou estarão sempre presentes. De qualquer modo, alguns deles sempre aparecem por uma circunstância ou por outra.

Além disso, sempre temos aqui uma parcela de imprevisibilidade, de forma que as coisas podem ser o que parecem – ou não. Some-se a isso, como veremos mais à frente, as presentes condições tecnológicas, que ampliam infinitamente as possibilidades recombinantes das tecnologias, aparatos e artefatos que nos circundam, dilatando ainda mais o conceito e definição do que seria ou não gambiarra.

Por questões de espaço e pelo número gigantesco de criações, nos restringiremos a produções brasileiras e latino-americanas.
Podemos começar abordando a gambiarra de teor propriamente popular, aquela que conhecemos das ruas. A gambiarra é indubitavelmente vernacular, por sua natureza e origem. Nasce nos meandros da espontaneidade, do improviso diário para a sobrevivência, algumas vezes no terreno do pirateado, do ilícito, outras vezes dando um adicional criativo no meio do caos e da pobreza diária. O escopo é imenso, mas podemos pensar aqui numa ainda incipiente cartografia de aparatos e configurações:

Gatos, ou puxadinhos, ou seja, as fiações de energia elétrica ilegais; as “TVs a gato”, pegando ilegalmente programações de TVs a cabo; as montagens de bicicletas com caixas de som para propaganda popular em Belém do Pará, chamadas “bikes elétricas”; O Triciclo Amarelinho do seu Pelé, no Rio de Janeiro, conforme Gabriela Gusmão, que junta aparelho de som 3 em 1, TV, farol, baterias, capa de chuva, despertador e luzes de natal; ; os já “estabelecidos” trios elétricos, como sua mistura de caminhão e caixas de som de sound-system;; as transformações de sound systems em verdadeiros painéis de controle de naves espaciais nos bailes funk cariocas, entre outras variantes;

Algumas produções na esfera artística retratam esse universo da gambiarra popular, seja por um lado mais de registro e estudo como design, caso das fotos de Gabriela de Gusmão Pereira, ou nos registros de Christian Pierre Kasper, ou ainda nas fotos e vídeos de Cao Guimarães.

Reinterpretações sutis e sofisticadas do universo da gambiarra tecnológica popular têm sido feitas, por exemplo, por um coletivo brasileiro como o Bijari, que reutiliza muito do imaginário popular em pesquisas com camelôs, catadores e gambiarras, entre as quais se destaca seu atual projeto de pesquisa, sobre “tecnologias resistentes”.

Não poderíamos deixar de mencionar igualmente as práticas usuais na arena digital e catalogar algumas práticas como a pirataria digital, o crackeamento de programas, o war-driving (invasão de redes sem fio desprotegidas), utilizando, por exemplo, tubos de batatas Pringles, entre outras. O mesmo raciocínio vale para a crescente comunidade de desenvolvedores de software livre e open source. Baseados numa rede de intensa troca de informações e de códigos, seus criadores estão sempre criando, improvisando configurações, inventando novas modalidades de uso, de aplicação, verdadeiras “gambiarras de códigos”, abertas à interferência e ao aprimoramento do programa por quem se habilitar a fazê-lo.

Um outro tipo de gambiarras seriam aquelas criadas por artistas ou ativistas, através, por exemplo, de recriações de máquinas, suas alterações ou perversões ou novos usos. Ligações entre práticas artísticas e a invenção/alteração de máquinas não são nenhuma novidade. Engenhocas imaginadas ou produzidas por artistas povoam a imaginação humana já de longa data, se pensamos em criadores como Leonardo da Vinci ou Athanasius Kircher, para ficarmos em exemplos bem remotos. Uma máquina interessante, sem garantias, todavia, de bom funcionamento, é o Brain decooder plus, do artista recifense Moacir Lago. Divulgada como um “decodificador de pensamentos”, é uma invenção licenciada pela empresa Obsoletch Brasil, outra criação do artista.

Ele cumpriria a função que a tecnologia ainda não teria alcançado: decodificar o que há de mais íntimo e pessoal, ou seja, pensamentos e desejos. Por meio da ironia, Lago quer estimular a reflexão em torno da questão da ética na ciência e no avanço tecnológico, bem como a relação entre os artefatos tecnológicos e o cotidiano das pessoas. Para ele, as invenções tecnológicas criam desejos de consumo nas pessoas, que passam a achar obsoletos os equipamentos que possuem, frente a lançamentos novos e mais modernos. Além de questionar o uso da tecnologia pela arte e vice-versa, o artista põe em discussão a apropriação e democratização do conhecimento tanto na ciência como na arte.

Questionando a legitimação da arte por uma galeria, ele transformou o espaço da galeria da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, em dois ambientes da Obsoletch.
Mais envolvido com pesquisas de som, Paulo Nenflídio é um criador de engenhocas e geringonças sonoras que misturam materiais impensados e surpreendentes, como um berimbau com mouse e bobina de campainha ou instrumentos musicais que funcionam com o vento. Como instrumento de intervenção no espaço público, sua Bicicleta Maracatu é sem dúvida das que mais chama atenção.

Uma engenhoca instalada na traseira da bicicleta repete o ritmo do maracatu tocando um agogô quando se pedala. Gambiarras sonoras seriam igualmente as instalações e apresentações do grupo de músicos-artistas Chelpa Ferro, como um saco plástico preso a um motor, chamado de “Jungle” pela sonoridade rítmica semelhante à batida do jungle, ou a instalação Nadabrahma”, que chacoalha mecanicamente galhos de árvores secos com sementes, entre outras “máquinas sonoras”.

Artista proveniente da cena de mídia-arte, Lucas Bambozzi volta e meia trabalha com transgressões na esfera tecnológica. De especial interesse aqui é seu recente Spio Project, um robô aspirador Roomba hackeado para ser equipado com câmeras CCTV infravermelhas sem fio e de alta sensibilidade, e um diodo emissor de luz (led) para rastreamento no escuro. Spio transmite imagens em tempo real de acordo com a posição do robô, como uma espécie de gerador contínuo e autônomo de imagens sem autoria humana, e seus movimentos são seguidos por duas câmeras. Num “curto-circuito” em parte previsto, o robô tende a comportamentos e movimentos caóticos, enquanto ao mesmo tempo irrita os visitantes.

Uma das intenções do projeto é discutir a quase desapercebida invasão de nossas casas por aparelhos aparentemente inocentes, os quais podem muito bem estar equipados com dispositivos de vigilância ou localização remota. Spio alude às novas práticas emergentes na cultura digital, como o sampling e o remix, a inefetividade da intenção em trabalhos interativos, as mudanças na noção de autoria ou o trânsito contínuo entre altas e baixas tecnologias. Obviamente, o alvo maior de Spio é mesmo a vigilância que cada vez mais faz parte de nossa rotina, traduzida aqui numa paródia bem humorada e desfuncional de um pequeno gadget cativante (ou irritante) representando o arquétipo do olho eletrônico das sociedades de vigilância.

Sem estardalhaço, Etienne Delacroix, talvez mais do que qualquer outro, é dos artistas que mais incorporam muitas das questões aqui já discutidas. Belga e morando atualmente no Brasil, ele trafega numa zona indistinta onde se borram as fronteiras entre arte e engenharia, inclusão tecnológica e criatividade, gambiarra e design, ativismo cultural e educação, apropriação e reinvenção, teoria e prática. Bricoleur dos computadores, é um tipo de artista muito mais do processo que do produto. Formado em física, já passou, por exemplo, pelo MIT, onde tentou implementar seus “workshops nômades”, cuja idéia básica era criar uma interface de custo baixo entre a gestualidade do artista tradicional e os fundamentos das ciências da informática e da engenharia elétrica.

Reunindo estudantes de engenharia, computação, artes, comunicação, design, arquitetura e música, por um lado, e a crescente massa de sucata computacional, o projeto só começou a decolar mesmo na Universidad de La Republica em Montevidéu. Ali, em seus ateliês, computadores sucateados são desmontados, os dispositivos ainda operantes são selecionados e reaproveitados e usados não somente para construir computadores mas para fazer grandes instalações de arte.

Não se trata aqui de algo como uma “reciclagem” de máquinas com propósitos de inclusão social ou digital, mas antes de uma atitude mais fundamentalmente experimental, de uma processualidade técnica que envolve a sensibilidade de forma mais complexa, sem por isso deixar de lado essa mesma inclusão digital. Não será novidade nenhuma afirmar que no Brasil a gambiarra é uma prática “endêmica”. Mesmo assim, por que até hoje não hã uma teoria que lhe contemplasse a práxis? . Este texto é só um primeiro passo nesse sentido.

Talvez possamos ver razões para essa situação nos contextos em que as teorias sobre tecnologia, arte eletrônica, arte e tecnologia, ou mídia-arte florescem no Brasil. Deveríamos, pois, nos voltar mais ao que acontece à nossa volta, nas ruas, em vez de apenas estarmos a par das novas tendências nos EUA ou na Europa. Mais do que isso, talvez, se engajar num entendimento da gambiarra tecnológica demandaria igualmente abandonar pressupostos, vícios e preconceitos que ainda dominam algumas dessas cenas. Acima de tudo, abrir os olhos para um possível excesso de auto-complacência, um esnobismo para com as práticas mais populares. Da mesma forma que uma “arte pela arte”, as criações de arte e tecnologia muitas vezes correm o risco do ostracismo da “arte pela tecnologia”.

Nesse meio tempo, fecha-se os olhos para fenômenos que abundam não apenas na arena do imaginário popular, nas ruas de nossas grandes e pequenas cidades, entre bancas de camelôs ou nas esquinas das favelas, mas que estão igualmente disseminados, talvez com outros nomes, na cultura geek, nas cada vez mais criativas e abundantes produções das novas mídias, assim como são moeda corrente nas ações e máquinário de midiativistas e praticantes de mídias táticas.

Na cultura geek, como não perceber todas as práticas disseminadas na programação, nas instalações de sistemas, de tentativas com novos programas na comunidade de software livre, por exemplo, numa contínua reinvenção e práticas de testes? Isso sem contar o crescente número de modificações de aparelhos por usuários, as customizações, os hackings de games, de robôs, entre outros.

A a gambiarra é sem dúvida uma prática política. Tal política pode se dar não apenas enquanto ativismo (ou ferramenta de suporte para ele), mas porque a própria prática da gambiarra implica uma afirmação política. E, consciente ou não, em muitos momentos a gambiarra pode negar a lógica produtiva capitalista, sanar uma falta, uma deficiência, uma precariedade, reinventar a produção, utopicamente vislumbrar um novo mundo, uma revolução, ou simplesmente tentar curar certas feridas abertas do sistema, trazer conforto ou uma voz a quem é negado.

A gambiarra é ela mesma uma voz, um grito, de liberdade, de protesto, ou simplesmente, de existência, de afirmação de uma criatividade inata.
Por outro lado, ela não necessariamente implica num “produto final”, pois também é processo, um “work in progress”.

Talvez o processo seja mais importante, talvez exatamente por que a gambiarra nunca é final, sempre há algo para acrescentar ou aprimorar. No entanto, há algo mais. Como vimos pelos exemplos dos ativistas brasileiros, a gambiarra também é método. É modo, modus operandi, tática, de guerrilha, de ação, de transmissão, de disseminação. Isso pode ser observado não apenas no modo de funcionamento dos grupos ativistas de mídia mas também nas práticas dos coletivos artísticos, locais e redes alternativas.

Espaços alternativos em todo o Brasil, como a Casa de Contracultura de São Paulo, o já extinto Gato Negro, Espaço Insurgente, Espaço Impróprio e Espaço Estilingue são lugares não apenas de encontro mas, numa espécie de “gambiarra processual” anarquista, efetuam residências, ocupações, trocas e estratégias auto-sustentáveis para manter suas existências e realizar intercâmbios entre artistas, ativistas e grupos.

As presentes condições da tecnologia têm permitido a proliferação cada vez maior de aparatos, possibilidades de conexão e convergências, redes on-line e off-line cada vez mais interconectadas, onde dispositivos móveis, wi-fi, aparatos de localização à distância, GPS, RFID e outros sistemas dialogam e possibilitam igualmente a mixagem de tecnologias analógicas e digitais, low e hi-tech, no que a teórica Gisele Beiguelman tem denominado de cultura cíbrida.

Essa intensa convergência tecnológica, por sua vez, têm coincidido com um verdadeiro boom, na área de novas mídias e arte e tecnologia, da prática da invenção (ou reinvenção) usando instrumentos e aparelhos pré-existentes, gerando uma infinidade de geringonças, gizmos e engenhocas os mais estranhos e com os fins mais variados, de formas diferentes de comunicabilidade a novas estratégias de ativismo, de maneiras impensadas de lidar com o espaço urbano a tentativas inovadoras de se adaptar a uma provável ubiqüidade das máquinas computacionais.

Tais condições têm de certa forma borrado os limites entre o artista e o engenheiro, algo tão sonhado pelos produtivistas russos, e embaralham as noções estanque que Levi-Strauss criara ao separar o bricoleur do engenheiro, por um lado, e do artista, por outro. Todas essas circunstâncias abrem perspectivas de futuro quase imprevisíveis para os praticantes e criadores de gambiarras. Poderíamos mesmo fazer algum exercício de especulação futurista sobre o que a gambiarra nos reserva.

Para tanto, podemos recorrer a alguém que de certa forma já vislumbrou alguma paisagem para essas geringonças que nos cercam, o escritor de ficção científica Bruce Sterling, que tem ultimamente escrito sobre os objetos e aparatos de hoje e de amanhã. Sterling, num exercício de especulação que chamou de design fiction, uma “ficção de design”, forma mais “desenhada” de ficção científica, imagina nosso futuro a partir de nossa relação com os objetos.

Em seu último livro, Shaping Things, um espécie de libelo do design sustentável para o futuro, ele acredita que “estamos em perigo porque desenhamos, construímos e usamos hardware desfuncional”. Sterling, muito sensatamente nos diz que a presente forma de exploração das classes dominantes usa formas arcaicas de energia e materiais que são finitos e tóxicos. Tal regime destrói o clima, envenena a população e gera guerras por recursos.

Ou seja, não tem futuro.
Em sua escrita peculiar, Sterling tenta nos mostrar, numa linha evolutiva, como o homem, em seu trajeto tecnológico, passou da produção e utilização de artefatos, a dada altura na história – pelo final do império Mongol, segundo o autor -, para o uso de máquinas que substituíram os artefatos, transformando os seus utilizadores em clientes. Séculos à frente, depois da Primeira Guerra Mundial, estes clientes são transformados em consumidores, quando as máquinas evoluem para produtos, através da distribuição, comercialização e fabrico anônimo e uniforme.

Esta evolução implicaria em especializações na manufatura e uso das coisas, especializações que se agudizariam no momento seguinte, segundo Sterling, iniciado em 1989, quando apareceram os gizmos (engenhocas, gadgets) e consumidores viram utilizadores-finais na “Nova Desordem Mundial” em que vivemos agora. Os gizmos são, pois, objetos altamente instáveis, alteráveis pelo utilizador, tremendamente multifuncionais e normalmente programáveis. Têm também um período de vida curto. Os gizmos oferecem tanta funcionalidade que é normalmente mais barato importar novas funcionalidades para o objeto do que seria simplificá-lo.

A evolução seguinte seria o que Sterling define como spime. Tecnicamente, spimes – um neologismo do autor - ainda não existem enquanto tais. Na previsão de Sterling, o spime é maquinário interativo, novo, inventivo, objeto fabricado cujo suporte informativo ou dados armazenados são tantos e tão ricos que conformam a materialização de um sistema imaterial. Spimes começam e terminam como dados. São sustentáveis, aprimoráveis, com identidade única e feito de substâncias que podem ser retornadas à cadeia de produção de outros futuros spimes. Como diz Sterling, “Spimes são informação fundida com sustentabilidade”.

Muito embora Sterling não cite a produção “faça-você-mesmo” de forma direta e o spime incorpore dados da história do próprio objeto (entre outras formas, pelo sistema RFID), sofisticação esta muito distante de boa parte das atuais criações de gambiarras, não há como não ver em sua visualização do spime um pouco da multi-função, da sempre presente possibilidade de recriação, de alteração e modificação que define o caráter recombinante da gambiarra.

Numa trajetória quase biológica, como poderíamos pensar com Gilbert Simondon ou Bernard Stiegler, o objeto técnico (o aparelho, o aparato, o que seja) pode se aprimorar com o tempo, gerando compostos, se transformando, numa linha quiçá realmente evolutiva. E nessa linha, a gambiarra bem poderia ser uma irmã mais criativa, mais arriscada dos gizmos, ou seja, uma precursora do spime. Ou então será que, com suas constantes atualizações e reatualizações, a gambiarra já não é ela mesma um spime?


Texto publicado originalmente no Caderno Videobrasil-Arte Mobilidade e Sustentabilidade 2006.
Associação Cultural Videobrasil.